Ventos de mudança

Livro e documentário revivem a luta de intelectuais que fizeram do Cebrap um lugar para se repensar o Brasil e o sentido da prática política.

Era 1957. Ainda levaria tempo até chegar a escuridão da ditadura militar. Mas a resistência intelectual ao autoritarismo jogava suas sementes num seminário organizado por professores assistentes da Universidade de São Paulo (USP) para a leitura de “O Capital”, de Karl Marx. Em dezembro de 1968, o ato institucional nº 5 joga o país na repressão política. O Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) nasce em maio de 1969. São três momentos que se conectam.

Um livro e um documentário em DVD que o acompanha, os dois com o título “Retrato de Grupo”, foram produzidos para assinalar os 40 anos de fundação do Cebrap e sua contribuição essencial, no período, para a renovação do pensamento sociológico brasileiro – apesar das ações intimidadoras da ditadura sobre a Universidade, mas também, de certa forma, sob seu estímulo -, e a irrigação, por métodos e objetivos de pesquisa, da prática política no país nos anos que se seguiriam. No lançamento do livro, dia 24, em São Paulo, haverá um encontro de Fernando Henrique Cardoso, um dos fundadores do Cebrap, e Francisco de Oliveira, que se integrou ao grupo em 1970. O livro, organizado pelos sociólogos Flavio Moura e Paula Montero, reúne entrevistas de personalidades acadêmicas ligadas ao Centro, espelhadas em depoimentos colhidos para o filme, dirigido por Henri Arraes Gervaiseau. Também há textos sobre Ruth Cardoso (1930-2008), Cândido Procópio de Camargo (1922-1987) e Vilmar Faria (1943-2001).

O Cebrap foi gestado no descontentamento de um grupo de jovens intelectuais com uma cultura altamente hierárquica e cientificamente neutra, orientada por marcos conceituais ligados aos grandes clássicos do pensamento sociológico da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade da USP. A ideia de fundar um centro de pesquisa e debate interdisciplinar que permitisse superar as limitações do ambiente acadêmico se consolidou com a edição do ato institucional nº 5, e o Cebrap acabou por tornar-se uma alternativa profissional para muitos desses jovens.

“A criação do Cebrap não esteve ligada somente às injunções conjunturais, mas também à preocupação de implementar novos métodos de trabalho, visando superar a compartimentalização do conhecimento e os constrangimentos da estrutura universitária tradicional”, escreveu Bernardo Sorj, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretor do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais, em “A Construção Intelectual do Brasil Contemporâneo” (2001).

A tensão com a “compartimentalização do conhecimento” começou a se manifestar em 1957, quando José Arthur Giannotti retornou da França com a ideia de formar um grupo de leitura de “O Capital”, de Karl Marx. “O seminário era o momento em que nós, jovens assistentes, podíamos ter um pouco mais daquilo que queríamos fazer: um trabalho de esquerda. Daí a necessidade de dialogar com Marx. Não se tratava de uma escola de marxismo. Era uma maneira de dialogarmos com o marxismo exterior e com o marxismo que existia dentro de nós”, lembra Giannotti.

Quase todos os integrantes do grupo eram professores ou alunos dos departamentos de sociologia, antropologia e filosofia da USP: Fernando Henrique Cardoso, Ruth Cardoso, Leôncio Martins Rodrigues, Paul Singer, Octavio Ianni, Roberto Schwarz, Fernando Novais, Bento Prado Júnior, entre outros. O próprio Florestan Fernandes – que na época ocupava a cátedra de sociologia, antes de ser cassado pelo AI 5 – reconheceu que seus assistentes “traziam consigo ventos novos” e que, “no processo de autoafirmação psicológica e científica, eles impunham o peso da renovação que configuravam, graças a [Georg] Lukács, primeiro, a [Jean-Paul] Sartre, em seguida, e [Lucien] Goldman, mais tarde, e a uma pletora de leituras menores, em que se confundiam a “nova esquerda”, a “contracultura” e os principais representantes mais recentes da sociologia europeia ou norte-americana”, escreveu Florestan em “A Sociologia no Brasil” (1977).

O seminário conferiu ao grupo uma formação marxista clássica, abrindo-lhe uma perspectiva do capitalismo diferente, por exemplo, das teorias da dependência propugnadas nas teses da Comissão Econômica para a América Latina (Cepal). Sorj lembra que, no livro “Dependência e Desenvolvimento na América Latina”, publicado em 1965, Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto já defendiam a ideia de que, mesmo nos países dependentes, o Estado nacional tem um espaço de liberdade e que a dinâmica política de cada país é determinante “em situações históricas concretas”.

No início da década de 1960, o marxismo chegou à USP por meio de cursos oferecidos por Fernando Henrique e Ianni. “Até então, a orientação teórica predominante nas ciências sociais era funcionalista-positivista: [Émile] Durkheim, [Ferdinand] Tönnies, [Max] Weber, Talcott Parsons, [Robert] Merton eram os autores estudados. Havia um ano de matemática, dois de estatística e um de metodologia e prática de pesquisa”, conta Leôncio Martins Rodrigues, fundador e membro do conselho do Cebrap.

Na época, o marxismo, que já havia se afastado do movimento operário e dos grandes sindicatos burocratizados, se deslocava para as universidades. “Os grandes teóricos do marxismo deixaram de ser intelectuais semimarginais, de militância política revolucionária, e passaram a ser professores universitários de prestígio. O marxismo acadêmico substituiu o marxismo militante”, lembra Rodrigues.

Anos depois, quando o Cebrap foi criado, o seminário de Marx serviu como um “mito fundador” da instituição, segundo Sorj, e seus membros assumiram o discurso marxista sem se subordinar ao debate ideológico. “Não havia exclusividade de ideias marxistas no Cebrap”, sublinha Fernando Henrique. “O seminário sobre Marx terminara seis anos antes. Eu já estivera exilado no Chile, havia trabalhado na Cepal, havia sido professor em Paris, e tinha uma visão muito mais nuançada da economia e da política e já havia escrito “Dependência e Desenvolvimento na América Latina”. No Cebrap, se juntaram a nós vários pesquisadores formados nos Estados Unidos, sem influência de ideias marxistas. Não éramos ideólogos, mas analistas sociais, mesmo quando muitos de nós tivéramos formação influenciada por Marx. O objetivo da criação do Cebrap era um só: sobreviver no Brasil – ainda que frequentemente dando aulas no exterior, para não perder os contatos e para melhorar os salários – e manter um foco de resistência intelectual ao autoritarismo predominante.”

Ao longo dos anos 1970, os intelectuais reunidos no Cebrap tinham a compreensão de que o Brasil iniciava um novo ciclo de expansão capitalista, que produziria profundas consequências econômicas e sociais, afirma Sorj. “O impressionante “milagre” econômico, a rápida derrota e marginalização da esquerda clandestina e os óbvios indicadores de desigualdade social alimentaram e favoreceram o tipo de análise desenvolvida pelo Cebrap. Essa capacidade analítica se sustentou tanto na teoria marxista como numa atitude renovada em relação ao papel do cientista social”, escreveu Sorj.

As análises refletiam um conhecimento científico não subordinado a nenhuma doutrina ideológica ou linha partidária e seu impacto político estava na capacidade de oferecer uma interpretação sólida do contexto histórico do país. “Enganou-se a ditadura brasileira quando supôs que o Cebrap era um biombo para atividades políticas, um disfarce entre outros que a esquerda utilizou sempre para burlar a pesada censura e repressão. A surpresa foi a inversão: o Cebrap fez política fazendo ciência social, ao invés do caminho mais tradicional de fazer ciência social começando pela política”, diz Francisco de Oliveira, que passou a integrar o staff do Centro em 1970. (Ver artigo na página 26)

Nos anos de ditadura, o Cebrap reconhecia os limites do momento político e orientava sua atividade para a pesquisa. “Nossas primeiras publicações tinham um caráter de arquivo, de relatório de pesquisa, e pudemos caminhar bastante. Cada um de nós tinha vinculação com setores liberais, o que foi muito útil na limpeza do terreno do Cebrap. Eram contatos pessoais e não institucionais. Tentávamos saber até onde poderíamos avançar”, conta Giannotti. “Mas no momento em que publicamos “São Paulo 1975: Crescimento e Pobreza”, encomendado pelo cardeal d. Paulo Evaristo Arns, soubemos que o Golbery [Golbery do Couto e Silva, então chefe do Serviço Nacional de Informações] teria dito: “´Isso não pode continuar”. O livro mostrou bem nossa aliança com a igreja progressista. Os paramilitares agiram e jogaram uma bomba no Cebrap.”

Fernando Henrique lembra que a bomba queimou parte da sala em que ele e Cândido Procópio de Camargo trabalhavam. “Em certo momento, todos nós fomos chamados à Oban, para interrogatório, sob ameaça de torturas, e, em outras ocasiões, membros do Cebrap foram presos e torturados. Isso porque, apesar de sermos um grupo de pesquisadores, as forças da repressão acreditavam que poderíamos ser fachada de alguma organização política, o que não era certo.” [A Oban – Operação Bandeirante foi um órgão de repressão que reunia agentes das forças armadas e das polícias civis, antecessor do DOI – Destacamento de Operações de Informações]

Os futuros pesquisadores – alunos de pós-graduação, mestrado e doutorado em ciências sociais – encontraram nos intelectuais do Cebrap a referência de uma geração mais velha e academicamente ativa. “Isso explica a enorme repercussão da produção do Centro no meio acadêmico”, diz Sorj. Mais que isso: o silêncio dos partidos valorizava a voz desses intelectuais, que passaram a ser uma referência também ideológica para os jovens.

Foi uma época particularmente fértil para o avanço das ciências sociais no país. “As coisas estavam claras: o inimigo era a ditadura e o marco teórico era o marxismo acadêmico. Ciências sociais e marxismo se confundiam e era possível traduzir ideias em um marco teórico comum”, analisa Sorj. Para o Cebrap, foi um período heróico, de resistência e de consolidação da pesquisa. Entre 1969 e 1981 – inicialmente, com o apoio financeiro da Fundação Ford e depois por meio de financiamentos – o Cebrap desenvolveu 123 pesquisas nas áreas de demografia, urbanismo, igreja e movimentos sociais, Estado, sistema político, modelo econômico, entre outros, contabilizou Sorj. Os resultados desses estudos eram publicados em livros e em coletâneas de textos, como “Estudos Cebrap” e “Cadernos Cebrap”, publicados até 1980.

A partir de 1979, com a volta do pluripartidarismo, “o Centro se divide entre simpatizantes do PMDB e do PT”, resume Sorj. O segundo fator “implosivo” foi a anistia e a reintegração dos pesquisadores do Cebrap nas universidades. A abertura aumentou os espaços de participação intelectual e política.

O resultado foi um esvaziamento crescente do Centro. Octavio Ianni foi o primeiro a deixar o Cebrap. Bolivar Lamounier criou um outro centro de pesquisa, o Idesp. Fernando Henrique assumiu a vaga de suplente no Senado quando Franco Montoro foi eleito para o governo paulista, do qual José Serra se tornou secretário de Planejamento.

Nos anos 1990, por iniciativa de Giannotti, o Cebrap criou seu próprio sistema de formação de quadros. “Nosso interesse era encurtar o mestrado, que era longuíssimo, de quatro anos. Depois, o aluno ainda levava mais quatro a cinco anos para fazer doutoramento. Viviam de bolsa e iam para o mercado já velhos. Era preciso criar válvulas de escape.” O Centro abriu concurso para mestrandos, que valiam como crédito e lhes dava a oportunidade de refazer “as bases de seu pensamento”. Os participantes não faziam pesquisa, “já que não queríamos repetir o sistema universitário”. Juntavam-se 12 pessoas de áreas diversas, “para manter a interdisciplinaridade, e escolhíamos livros ou aulas para serem dadas;”

O programa de formação de quadros não existe mais. “Há quatro anos”, conta Giannotti, “o Jorge Guimarães, da Capes, disse que não havia como encaixar no esquema da Capes. Pedi uma avaliação, já que se tratava de uma experiência de quase 20 anos. A resposta foi que a Capes não podia avaliar aquilo que não financia de forma regular. A Capes entrou na massificação” [do ensino superior].

De acordo com Paula Montero, atual presidente do Cebrap, a competição da instituição com a universidade ficou mais difícil. Os temas relacionados à desigualdade, demografia e população estão em pauta até hoje. Há um grande fio condutor, mas o contexto histórico mudou.”Há 11 anos, o Centro de Estudos da Metrópole, uma área das áreas de pesquisa do Cebrap, foi incluído no programa de Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). Na época, tínhamos nos tornado demasiadamente acadêmicos, com baixa capacidade de intervenção social. O Cepid trouxe dinamismo e abriu janelas de interação com a sociedade civil, prefeituras, entre outras”, diz Paula.

Com o apoio da Fapesp e de outras agências de fomento, não falta dinheiro para pesquisa. “O problema é que quem nos financia não autoriza a inclusão de itens relacionados à infraestrutura. Tivemos que inventar um novo modelo e, no momento, estamos fazendo uma discussão difícil: analisamos a possibilidade de abrir para o financiamento de grandes clientes na condição de prestadores de serviços, para atender, por exemplo, prefeituras com dificuldades na elaboração de políticas públicas ou grandes empresas com interesse em acompanhar temas que estão sendo debatidos no Congresso Nacional. E criamos um grupo de jovens pesquisadores doutorandos que executam projetos rápidos”, ela conta.

Enquanto o Cebrap busca definir novos rumos de pesquisa, as ciências sociais prospectam seu objeto. “As ciências sociais ficaram desarvoradas com o que está acontecendo no mundo, em que não há distinções de esquerda e direita, e a política se mete na economia. Estamos passando por uma fase de transição muito grande e os objetos das ciências se transformam”, analisa Giannotti. “No caso do Brasil, temos um aumento considerável da produção científica, cuja qualidade, pela nossa experiência, é péssima. A ideia de avaliação dos cursos, dos professores e dos pesquisadores avançou, mas tem sido extremamente burocrática. Você é forçado a publicar e a quantidade de revistas de ciências humanas é enorme. Aumenta o número de publicações, mas não aumenta a presença de nossas angústias intelectuais: estamos virando uma máquina de produzir questões que até são interessantes, mas não trazem mais a paixão dos anos antigos. É inegável que a universidade tem hoje uma presença muito menor na vida espiritual da nação do que há 20 anos”, observa Giannotti.

Leôncio Martins Rodrigues acredita que houve um salto muito grande, em termos quantitativos e qualitativos, pelo menos na sociologia e na ciência política. “Hoje, nas principais universidades, quem não tem doutorado nem se apresenta para um concurso de seleção de professores”, exemplifica. Mas reconhece que, do ponto de vista qualitativo, essas teses não têm mais o prestígio dos grandes trabalhos e das grandes obras de interpretação do Brasil.

“Retrato de Grupo”, editora Cosac Naify. 328 páginas, 84 ilustrações. DVD encartado com filme de 1h30. Lançamento em 24 de novembro, a partir das 19 horas, no Sesc Vila Mariana (rua Pelotas, 141).

FONTE Valor Econômico

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