Memorial Giannotti

Rigor, paixão e ousadia na
formação de intelectuais

Este Memorial Giannotti é um gesto de reconhecimento público e uma homenagem que o Cebrap e um grupo de intelectuais brasileiros prestam a José Arthur Giannotti, mestre que liderou e levou à frente por 21 anos o Programa de Formação de Quadros do Cebrap entre 1986 e 2007. Mais de 120 pesquisadores, filósofos, sociólogos, geógrafos e acadêmicos de diversas áreas viveram a experiência inesquecível de participar desse programa que lhes serviu de sólida referência ao longo da vida.

Aqui estão os depoimentos de alguns dos privilegiados participantes do programa liderado por Giannotti, que nos deixou no último dia 27 de julho. Fica evidenciado nas palavras aqui transcritas o impacto intelectual que a passagem pelo programa produziu na vida de cada um. Era difícil entrar. Escrutinando os candidatos estavam alguns dos mais rigorosos mulheres e homens devotados à pesquisa nas áreas de ciências humanas, filosofia, política, economia, sociologia, literatura.

As barreiras entre as disciplinas eram transpostas sem cerimônia. Filósofos discutiam economia. Economistas aprendiam psicanálise. Os alunos tinham formações diversas, assim como os mestres. E que mestres! Ruth Cardoso, Paul Singer, Chico de Oliveira, Luiz Felipe Alencastro, além do próprio Giannotti.

“Giannotti amava o conhecimento, da forma mais verdadeira que pode existir. Essa lição, para mim, é a mais valiosa”, escreve aqui Paula Vermeersch, professora de História da Arte e da Arquitetura da Unesp. “Que sua lembrança permaneça viva, mais do que nunca, naquele seu lugar, naquela primeira fileira”, ressalta Alberto Alonso Muñoz, juiz de direito do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Outros depoimentos serão integrados a este Memorial, idealizado por Angela Alonso, assim que forem endereçados ao e-mail memorialgiannotti@gmail.com

Gustavo Acioli

Professor Adjunto do Departamento de História da UFRPE

Programa de Formação de Quadros, 2002-04

A participação no Programa de Formação de Quadros do CEBRAP foi uma das experiências mais importantes em minha formação acadêmica. As leituras e discussões de textos com temáticas diversas, que iam bem além do campo no qual eu estava me especializando, acompanhadas das discussões com o prof. Giannotti e com pesquisadores convidados, enriqueceram sobremaneira minha compreensão dos debates acadêmicos nas Ciências Humanas.

Igualmente, a orientação do prof. Giannotti nos proporcionou uma forma de ler os textos, atento aos aspectos estruturantes, que até hoje eu pratico e procuro estimular os/as estudantes a adotar. Foi durante o Programa que conheci meu futuro orientador de doutorado (Pedro Puntoni) e formulei o projeto com o qual fui admitido na pós-graduação em História da USP. Por fim, eu tive o privilégio de contar com orientação individual pelo prof. Giannotti, em sessões de discussão de textos de Marx, que me deram uma contribuição inestimável ao meu amadurecimento intelectual. Dessa forma, sempre guardei o período no CEBRAP como um momento único em minha trajetória formativa.

Thiago Rodrigues

Professor Associado no Instituto de Estudos Estratégicos (INEST) da Universidade Federal Fluminense (UFF)

Programa de Formação de Quadros, 2000-01

Foi com Giannotti que descobri que sabia duelar. Desde a entrevista no processo de seleção para o Programa de Formação de Quadros, em 2000, até passados alguns anos da conclusão desse programa, pude desfrutar de características suas bem conhecidas: o espírito provocador, a agudeza nos comentários, o sarcasmo na erudição.

Giannotti me achou um camarada curioso: internacionalista, formado na PUC-SP, pesquisador de narcotráfico, foucaultiano e libertário. Com tal physique, é claro que o filósofo não perdia uma chance de me alfinetar em temas como política internacional, revolução, Nietzsche, Marx, Bakunin e política de drogas. E eu, irônico e, sobretudo, envaidecido com a atenção, respondia sempre. Evidente que não deve ter sido nunca à altura, mas ele gostava.

Dizia que eu era um “romântico alemão” e tinha (certa) razão. Sabe-se que ele respeitava quem não levava desaforo para casa... Quando nos visitava nas sessões do grupo de bolsistas, reafirmava a profissão-de-fé do Programa: promover a formação de uma geração de intelectuais.

Pelas amizades densas e duradouras que fizemos, pelas parcerias ricas que formamos e olhando para tantos nomes de alumni que hoje brilham na academia e além dela, Giannotti conseguiu o que queria. Guardo com carinho três livros que me deu de presente: um exemplar dedicado do seu Marx, vida e obra, uma cópia anotada por ele de On Revolution, da Arendt, e uma edição antiga de Essai sur l’origine des langues, de Rousseau. Me disse assim: “não quer ser poeta? Leia o Rousseau!” Foi lido, Giannotti! Foi lido.

Um mestre de personalidade indômita

Se não me engano, foi Roberto Schwarz quem definiu o estilo do Giannotti como “método selvagem de civilização”. Era mesmo. A civilização vinha pelo aprendizado compulsório de tudo o que o professor expulso da universidade julgava que se devia aprender para merecer o título de intelectual. Ao longo dos dois anos do Programa, li Auerbach, Homero, Koselleck, Kant, Keynes, Levi-Strauss, Evans-Pritchard, Durkheim, Freud.

Ler é verbo fraco. A tarefa era dissecar o texto, de cima abaixo, de ponta-cabeça, virar pelo avesso. Não importava a envergadura da obra, cabia resistir a seu fascínio e acessar a lógica da argumentação, entender cada passo, depois questioná-la. Assim se quebravam mitos e se derrubavam cercas entre disciplinas.

Aprendia-se a pensar problemas, em vez de assuntos, a reverenciar a arquitetura de um argumento, não o nome de seu autor. Método civilizador que extrapolava os livros. Nos intervalos, chopes, cafés, vinham aulas difusas sobre cinema, teatro, música, pintura, viagens, e, invariavelmente, culinária e política.

O Programa visava formar uma elite intelectual, mas não era elitista na triagem, tanto assim que Giannotti garantiu bolsas de inglês, francês e, adiante, alemão, para participantes do Programa. O método tinha uma face selvagem, dada a personalidade indômita do mestre. A voz de trovão nos inquiria de modo visceral, impaciente e, não raro, impiedoso. Assustava no ato. Mas convidava ao contra-argumento, à controvérsia, que ele tanto apreciava. Preparava para o embate acadêmico genuíno, como para as disputas políticas.

O efeito de longo prazo foi nos preparar para debater com qualquer um, em qualquer circunstância, sem se dobrar a títulos, modas ou autoridades. Ensinou, pelo exemplo, o imperioso de avançar para além da cidadela universitária e discutir o presente vivido, falar para a sociedade inteira, fazer a diferença. Ele fez, seguirá fazendo.

Angela Alonso

Professora titular de sociologia da USP, pesquisadora do Cebrap e coordenadora adjunta de Ciências Humanas e Sociais, Arquitetura, Economia e Administração da FAPESP

Anos no programa de formação de quadros: 1993 -1995

Giannotti tinha compromisso com a formação ampla e rigorosa

Ingressei no Programa de formação de quadros em 1999, depois de uma entrevista de dinâmica heterodoxa em que Giannotti mudou as perguntas antes que qualquer uma delas fosse sequer parcialmente respondida por mim, como se as primeiras ideias para respondê-las iluminassem o caminho que iria ser percorrido, e isso fosse suficiente para levá-lo a disparar uma nova provocação. Não apenas as perguntas mudaram de modo célere, também os assuntos: o projeto e suas questões teóricas, meu interesse no programa de formação, literatura recentemente lida, cinema, meu uso de brincos nas duas orelhas e assim por diante.

Depois, já no programa, aprendi a entender o estilo direto e provocativo de Giannotti, à procura de resistência como sinal de vida inteligente. Ao longo de dois anos intensos de leituras e debates com duas gerações diferentes de membros do programa, as aparições repentinas de Giannotti colocavam em movimento o rito: uma pergunta inesperada lançada ao ar deixando o desafio de elaborar alguma resposta razoável; depois, quando as tentativas mostravam suas pernas curtas, Giannotti enveredava pela elaboração, não de respostas, mas dos problemas subjacentes às perguntas. O compromisso do Giannotti com a formação ampla e rigorosa, ao modo de uma Paideia, deu vida ao programa e dele muitos nos beneficiamos imensamente.

Foi um momento especialmente rico na minha formação, em que se alternavam as reuniões no porão, com ou se aparições do Giannotti, com os seminários semanais da casa e as conversas pós-seminários nas redondezas do Cebrap, então menos servidas de opções gastronômicas do que agora. Há mais opções, mas sem as intervenções provocativas de Giannotti, mesas e mesões ficaram pouco convidativos.

Adrian Gurza Lavalle

Professor livre docente do Departamento de Ciência Política da USP
Vice-diretor do CEM
Editor-chefe da Brazilian Political Science Review

Programa de Formação de Quadros, 1999-00

Gustavo Acioli

Professor Adjunto do Departamento de História da UFRPE

Programa de Formação de Quadros, 2002-04

A participação no Programa de Formação de Quadros do Cebrap foi simultaneamente desafiadora e enriquecedora. O desafio residia no alto grau de exigência e engajamento acadêmico demandados por Giannotti e por toda a equipe de pesquisadores do Cebrap, resultando num rico processo de formação intelectual.

A minha turma de jovens pesquisadores esteve em contato constante com o prof. Giannotti durante os anos de 1991-1992, pois ele coordenou pessoalmente as atividades que desenvolvemos ao longo daquele período. No primeiro ano nós discutimos junto com ele toda a obra de Habermas, Teoria da Ação Comunicativa, apresentando seminários que eram discutidos no grupo sob a coordenação direta dele.

No segundo ano propusemos a ele um programa de seminários voltados para a formação do pensamento social brasileiro. Foi então que tivemos a incrível oportunidade de desenvolver e aprofundar estudos sobre os principais referenciais teóricos do pensamento social brasileiro, cobrindo um arco histórico que ia do final do Império até os anos 40 do século XX.

O programa de estudos incluiu leituras e discussões com diversos pesquisadores do Cebrap, versando sobre autores que iam de Machado de Assis e Joaquim Nabuco a Caio Prado Junior, passando por Sergio Buarque de Holanda, Gilberto Freire, Euclides da Cunha, dentre muitos outros mais.

Considero que a participação no Programa de Quadros do Cebrap constituiu uma etapa formativa importante na minha trajetória acadêmica, tanto por causa do alto grau de exigência teórica que ali imperava, quanto pela oportunidade de consolidar uma formação aberta às demandas da interdisciplinaridade.

Paula Vermeersch

Professora de História da Arte e da Arquitetura- FCT/Unesp

Programa de Formação de Quadros, 2001-2004

Fui bolsista do Programa de Formação de Quadros do Cebrap entre 2001 e 2003, e depois, em 2004, fiquei um ano trabalhando com o professor Giannotti, como uma espécie de "assistente". Na época, ele preparava um livro sobre Estética- O jogo do belo e do feio, que foi publicado em 2005. "Assistente" é modo de dizer- eu evidentemente em nada ajudava a não ser em fazer perguntas bobas que faziam o mestre rir muito, ou irritá-lo com a minha falta de jeito com os textos de Kant.

Lembro-me bem do medo que tive ao ir para a entrevista do Programa- os amigos que lá estavam contavam histórias terríveis e eu fiquei bastante assustada. Mas o imprevisto ocorreu- eu e o professor começamos a discutir na entrevista. Voltei para casa certa de que não tinha passado e qual não foi minha surpresa ao descobrir que ele tinha me aprovado justo por não ter aceito o que ele dizia, assim de pronto.

Tenho muitas lembranças engraçadíssimas e gratidão pela generosidade e afinco com o qual ele se dedicava a nós, bolsistas. Escolhido o tema dos seminários, o professor ia atrás de convidados, textos, fazia o possível e o impossível para auxiliar nossos estudos. Essa generosidade também estava nas sugestões de temas para pesquisas, nos convites para exposições, mostras, seminários. Ele amava o conhecimento, da forma mais verdadeira que pode existir. Essa lição, para mim, é a mais valiosa.

Denise Vitale

Professora Associada do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências prof. Milton Santos da Universidade Federal da Bahia

Programa de Formação de Quadros, 2005-2006

Fui bolsista do Programa de Formação de Quadros do Cebrap de março de 2005 a fevereiro de 2006. Coordenado pelo professor José Arthur Giannotti, o Programa foi um marco na minha vida e carreira universitária, experiência até hoje presente em minhas escolhas, ponderações e reflexões. Terminei um ano antes do previsto pois fui contratada para ser professora e pesquisadora no Mestrado em Políticas Sociais e Cidadania da Universidade Católica do Salvador, na Bahia, que se iniciava. O Programa atingira plenamente seu objetivo comigo, que então me tornava um novo quadro para a pós-graduação brasileira.

Conheci o Programa durante o meu doutorado, quando era pesquisadora do Núcleo Direito e Democracia, coordenado pelos professores Ricardo Terra e Marcos Nobre. A abordagem interdisciplinar trabalhada em um grupo pequeno de recém-doutores com variadas formações e a possibilidade de passar dois anos me preparando para o ingresso mais qualificado e maduro na vida acadêmica me atraíram imediatamente.

Fiquei com aquela luzinha acesa e, assim que me tornei doutora, me candidatei a uma vaga no Programa. Meu primeiro contato com o professor Giannotti foi na entrevista de seleção. Lembro-me bem de sua fala sobre o objetivo do Programa: formar pensadores rigorosos e livres. Desde ali, tive a certeza de estar no lugar certo para o mundo que queria para mim, e para meu filho, que logo mais nasceria.

Durante o Programa, essa certeza sempre se confirmou. Nós, os bolsistas, poderíamos escolher o que quiséssemos ler, desde que com rigor e alteridade. Tive a oportunidade única de ler autores bastante diversos como Sausurre, Nietzsche, Foucault, Lévi-Strauss, Geertz, Stirner, escolhidos livremente pela própria turma.

A orientação do prof. Giannotti, nosso tutor, era a de que não apenas poderíamos como deveríamos usufruir de um verdadeiro período sabático, de abertura para o novo, para o pensamento diverso, para o campo do conhecimento desconhecido, para o argumento e o olhar diferente do colega.

Não era um pós-doutorado qualquer. Era um programa de formação de quadros para as universidades brasileiras e, sobretudo, de formação de cidadãos e seres humanos íntegros, capazes de transitar pela pluralidade e de construir pontes e caminhos possíveis para a melhor convivência humana. É essa a lição que ficou e que tento passar no meu ofício de professora, hoje no Instituto de Humanidades, Artes e Ciências prof. Milton Santos da Universidade Federal da Bahia. Obrigada, Giannotti!

Eduardo Luiz Machado

Pesquisador do Instituto de Pesquisas Tecnológicas e docente da Universidade Federal de São Paulo

Programa de Formação de Quadros, 2003-04

Participei da primeira turma do Programa de Formação de Quadros no novo formato com recém-doutores. Nesta primeira turma, o grupo foi composto por quatro alunos recém-doutores e quatro alunos de mestrado. Enquanto, em 2004, o grupo passou a contar com somente recém-doutores de diferentes áreas do conhecimento.

Neste breve biênio, diversos programas de leitura foram realizados, destacando-se: Estado e Direito em Hegel; Antropologia Clássica; Modelos sobre a Formação e Desenvolvimento do Parque Industrial Brasileiro; Teoria Social em Max Weber; Teoria Política de Maquiavel a Foucault; Freud e o surgimento da psicanálise. Semanalmente, às terças e sextas-feiras, nos reuníamos em uma pequena sala para debater os textos escolhidos.

A multiplicidade teórica e metodológica sempre foi o ponto forte do Programa. O contato com “novas” formas de pensar enriqueceu meu repertório de saberes, contribuindo para meu crescimento pessoal e profissional. Frequentemente o Prof. Giannotti aparecia para enriquecer os debates. Eram momentos únicos e aguardados por todos.

Sergio Fausto

Diretor executivo da Fundação FHC

Programa de Formação de Quadros, 1986-88

Fiz parte da primeira turma dos chamados "bolsistas". Giannotti era o pai do programa, um pai severo, ora afetivo, ora ríspido, mas sempre dedicado a nos tirar da zona de conforto das nossas incipientes especialidades. Éramos – ou achávamos que éramos – três economistas, duas antropólogas, um filósofo com formação em direito e dois cientistas políticos. Giannotti nos pôs a ler Kant, a começar pelos Prolegômenos, na expectativa de que, a seguir, pudéssemos avançar para a leitura da Crítica da Razão Pura.

Os Prolegômenos eram um osso duro de roer, que ele nos ajudava a digerir com entusiasmo. Líamos, relíamos e discutíamos com ele, em grupo. Temo que, passados 35 anos, minha memória kantiana esteja esmaecida. Mas a experiência foi extraordinária e me abriu um horizonte de outras leituras, que me ajudaram a compreender os clássicos da política, em cuja companhia me sentia mais à vontade do que com Kant.

Além das "aulas" com ele e outros pesquisadores do Cebrap, Giannotti nos incentivava a participar de todos os seminários da casa. Desses encontros, saiam faíscas, em geral favoráveis à reflexão. Aproveitei imensamente as discussões interdisciplinares sobre economia e política e conheci Guillermo O’Donnell, que marcou a minha formação.

Para usar um clichê, saí do Cebrap em 1990, mas o Cebrap não saiu de mim. Na minha trajetória profissional, em empresas de consultoria, no governo e na Fundação FHC, o gosto pela interdisciplinaridade e, quem sabe?, algum talento para transitar entre as distintas ciências humanas me ajudaram a compreender a "realidade" e nela intervir dentro das minhas possibilidades e circunstâncias.

Luis Donisete Benzi Grupioni

Coordenador Executivo do Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena, e secretário da Rede de Cooperação Amazônica (RCA)

Programa de Formação de Quadros, 1993-95

O Programa de Formação de Quadros Profissionais do CEBRAP me abriu horizontes, literalmente, propiciando contato com outras disciplinas e autores, cujas leituras foram facilitadas pelos membros do Cebrap. Com Giannotti, Ruth Cardoso, Elza Berquó, Francisco Oliveira, Luiz Felipe de Alencastro, lemos e discutimos obras da filosofia, literatura, psicanálise, economia... Os seminários da casa, discutindo questões do momento, ou obras recém-lançadas, foram momentos que marcaram minha passagem pelo Cebrap.

Ao término do Programa, passávamos por uma banca onde defendíamos nosso paper de conclusão. O meu se intitulava “Coleções e Expedições Vigiadas: o caso Nimuendajú e o caso Lévi-Strauss no Conselho das Expedições Artísticas e Científicas no Brasil”. Lembro que recebi muitas críticas e sugestões, da banca e da plateia (sim, na defesa do paper, a plateia, formada pelos pesquisadores do Cebrap, bolsistas e convidados se manifestava).

Eis que Giannotti pega a palavra, responde ele mesmo boa parte das críticas, e diz que meu mestrado estava resolvido. Ele era assim, certeiro. Esbanjava erudição e rigor. Não poucas vezes, tinha a sensação de não entender a maior parte do que ele falava. Mas, reconheço, sempre tinha encanto. Foi um privilégio ter sido bolsista do Cebrap e convivido aqueles anos com o professor Giannotti. Vai fazer falta nesse Brasil sem rumo.

Iris Kantor

Professora do Departamento de História FFLCH-USP

Programa de Formação de Quadros, 1992-94

Integrei o Programa de Formação do CEBRAP durante a elaboração da dissertação de mestrado, entre os anos de 1992 e 1994, numa turma em que a proporção entre mulheres e homens era de 3 para 12. Estávamos no governo de Itamar Franco. Fernando Henrique Cardoso exercia o cargo de ministro da Fazenda e o plano real só viria a ser decretado em fevereiro de 1994. As bolsas da CAPES eram pagas sem regularidade, e o CEBRAP fazia das tripas coração para nos antecipar o depósito, muitas vezes quinzenalmente, porque a hiperinflação liquefazia o valor da bolsa antes que pudéssemos saldar os compromissos.

Sempre atento às circunstâncias e às dificuldades de cada um, Giannotti acompanhava a maior parte dos seminários internos que realizávamos semanalmente, compartilhando conosco seu entusiasmo, inquietação e apreciações críticas, tanto sobre os debates teóricos, como também dos artigos de opinião publicados na grande mídia.

Ali, no espaço aberto do cafezinho, o professor criava em torno de si uma microesfera pública, onde os pesquisadores da casa, editores da Revista Novos Estudos e os professores convidados esgrimiam argumentos, contavam anedotas divertidas e propunham agendas políticas relevantes. Sob sua regência, experimentamos a radicalidade do seu método crítico, um estilo que talvez guarde afinidade com o belo poema de João Cabral de Melo Neto: A educação pela pedra (1966)

Quando entrei no Programa do Cebrap - cujo edital de seleção descobri meio que por acidente, quando estava entrando no último ano de meu mestrado - o Programa em si já existia há algum tempo. A cada ano, ele se renovava, embora os ingressantes permanecessem nele por dois anos. De modo que, a cada ano também, uma parte do grupo permanecia, e outra parte mudava com a nova leva.

Pela própria natureza do projeto, de caráter interdisciplinar, dele participavam pessoas da Sociologia, da Ciência Política, da História, da Filosofia, da Antropologia e assim por diante. Eu entrei com uma certa formação em filosofia, pois fazia o mestrado no Programa de Pós-graduação em Filosofia do IFCH/Unicamp, que também tinha um estilo bastante interdisciplinar (eu vinha de uma graduação em Física).

O mestrado que eu fazia era uma pesquisa sobre Descartes (algo sobre sua cosmologia), mas estava cada vez mais me inclinando a fazer, depois que o encerrasse, um doutorado em Ética e Filosofia Política. De modo que escolhi o professor Giannotti para me orientar no Programa - uma vez que, ao final dele, tínhamos de apresentar e defender perante uma banca, um trabalho escrito -, lhe propus o seguinte: estudar a correspondência de Descartes com uma princesa alemã, na qual discutiam o pensamento de Maquiavel.

Foi uma experiência muito gratificante, e tive com o professor Giannotti excelentes conversas, não só sobre Descartes e Maquiavel, mas sobre os mais diversos tópicos de política e filosofia. Em fins de 1990, apresentei meu trabalho no Cebrap, mas já estava inscrito no Doutorado do Departamento de Filosofia da USP, onde fui orientando do prof. João Paulo Monteiro (já falecido).

Além de preparar o trabalho final, os participantes do Programa do Cebrap tinham de semanalmente se encontrar para discutir um roteiro de leitura. Pois foi a partir dali que entrei em contato, também, com uma bibliografia básica de teoria social e ciência política: textos de Weber, Parsons, Lévi-Strauss, A. Pizzorno, R. Dahl, A. Przeworski e outros. Lembro-me de termos discutido até uma coletânea de textos de Freud, para a qual convidamos, certa vez, o conhecido estudioso de sua obra, Renato Mezan.

Cicero Romão Resende de Araujo

Professor titular, Departamento de Filosofia/FFLCH-USP

Programa de Formação de Quadros, 1989-90

Lembro-me, claro, dos debates acalorados dos seminários gerais do Cebrap, invariavelmente seguidos de uma boa chopada no bar da esquina (como se chamava mesmo?). Na época, Giannotti estava começando a gestar seu livro sobre Wittgenstein, e me recordo perfeitamente do seminário em que ele apresentou alguns aperitivos do que ainda estava por vir. Além disso, guardo a recordação de uma mesa redonda (na verdade, quadrada), onde diversos pesquisadores-sênior da instituição (Giannotti incluso, naturalmente) e outros convidados, debateram os impactos da queda do Muro de Berlim.

Vários anos depois, então como professor do Departamento de Ciência Política da FFLCH, tive a grande honra de ter o professor Giannotti na banca de meu concurso de livre docência. E, como não poderia deixar de ser, recebi na ocasião umas boas cacetadas de sua inteligência sempre muito aguda. Foi um teste difícil, mas guardo até hoje, e com gratidão, as críticas que ele fez ao meu trabalho, e que me ajudaram posteriormente a revê-lo com o devido distanciamento. A título de curiosidade: recordo que, algum tempo depois, liguei para o Cebrap e o encontrei. Giannotti me atendeu com a maior gentileza e disposição, e na conversa que se seguiu tive a oportunidade de lhe dizer o quanto me senti privilegiado pelo fato de ele ter dedicado parte de seu tempo precioso para ler e arguir a tese e o memorial que eu havia escrito.

José Arthur Giannotti "não brincava em serviço", como se diz. Deixa não só uma obra importante, mas um estilo de trabalho intelectual que combinava, singularmente, suor, brilho e paixão.

Sou imensamente grato ao
Programa e, em particular, a
Giannotti, que foi o grande baluarte
daquela iniciativa

Entrei no programa em 1993 depois de uma seleção que incluiu entrevistas de uma banca formada por José Arthur Giannotti, Ruth Cardoso e Chico de Oliveira. Era o sonho de consumo de qualquer aluno de mestrado da área de humanas, pois seria a chance de conviver com os maiores intelectuais do país, aprender com a experiência de pesquisa e o ambiente interdisciplinar do CEBRAP e ampliar os horizontes acadêmicos.

Era um programa inovador porque reunia mestrandos de distintas áreas para cumprir programa de leituras, seminários e discussões interdisciplinares. Líamos os mesmos textos, porém a formação diversa de cada um obrigava a que todos fizessem incursões em campos distintos de estudo para poder acompanhar o debate e contribuir para a discussão, tudo isso sob olhar atento, o entusiasmo e às vezes a exasperação de Giannotti.

Apesar do estilo direto e firme, sua generosidade era imensa, ouvindo seus pupilos, dando orientação de leitura e cobrando também empenho e resultados. Essa mescla de rigor e ternura fez de Giannotti uma referência. Tenho certeza que todos que passaram pelo programa, como é meu caso, só tiveram a dimensão de sua importância para nossa formação mais tarde.

Era o que Giannotti dizia: vocês só entenderão o impacto deste programa e desta exposição interdisciplinar ao debate rigoroso de ideias daqui a alguns anos. Tinha razão. Lançando um olhar retrospectivo, creio que o programa me ajudou a ter uma formação ampla e profunda, que se provou ferramenta de grande utilidade para a profissão que abracei, a diplomacia, onde a todo instante é preciso transitar e dialogar com o mundo da economia, do direito, da história, da sociologia, da ciência política, da filosofia, da antropologia, entre outras disciplinas, de modo a construir pontes, aproximar posições e encontrar caminhos de convergência que atendam às demandas da sociedade brasileira.

Sou imensamente grato ao Programa e, em particular, a Giannotti, que foi o grande baluarte daquela iniciativa, não apenas por ter me ensinado a pensar criticamente e a valorizar o debate plural de ideias, mas também por ter contribuído para dotar-me da sensibilidade, da abertura de espírito e do engajamento necessários à compreensão e ao enfrentamento dos desafios nacionais, sem jamais abandonar o compromisso inabalável com a democracia e a busca da uma sociedade economicamente próspera e socialmente justa.

Benoni Belli

Diplomata de carreira, Cônsul-Geral do Brasil em Chicago (EUA)

Programa de Formação de Pesquisadores, 1993-94

Cláudia Maria de Vasconcellos

Profª Dra. do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, FFLCH, USP

Programa de Formação de Quadros, 1997-1998

Participei do Programa de Formação de Quadros do CEBRAP de 1997 a 1998. Na época, apesar de estar cursando o meu mestrado em Filosofia na USP, não conhecia o professor Giannotti pessoalmente. Minhas lembranças daquela experiência são ótimas, sobretudo por conta da presença deste verdadeiro mestre e pensador.

O Giannotti compartilhou em seminário conosco o seu estudo sobre marxismo que viria a se tornar mais para frente, salvo engano, o livro Certa herança marxista. Com paciência em relação às nossas questões mais inocentes ou mais equivocadas sobre o assunto (e aqui falo mais de mim do que dos colegas), nos conduziu com generosidade pelo campo de suas ideias. Também marcou meu percurso, sua defesa de Hannah Arendt.

Entrando de surpresa um dia em um de nossos seminários, no caso sobre A condição humana de Arendt, interrompeu a crítica que fazíamos à filósofa - especificamente sua visão sobre Marx -, e nos deu uma verdadeira aula sobre esta obra, mas também sobre o que era filosofar, seus necessários riscos e recortes e apostas, sem os quais não se constrói um verdadeiro pensamento.

Giannotti neste mesmo dia explicou sobre a consideração que devíamos ter pelos trabalhos uns dos outros, ainda que os trabalhos contivessem equívocos, pois afinal estávamos todos no início de um percurso. Deixei o Cebrap mais madura intelectualmente, e com certeza por conta da seriedade e o rigor generoso, acho que é uma expressão precisa, com que o professor Giannotti nos acompanhou.

Alberto Alonso Muñoz

Mestre e doutor em filosofia pelo departamento de filosofia da FFLCH-USP. Mestre e doutor em teoria geral do direito pela Faculdade de Direito da USP. Juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.

Programa de Formação de Quadros, 1992-93

O programa, idealizado e coordenado por Giannotti, tinha por objetivo proporcionar aos selecionados (pós-graduandos de mestrado em ciências humanas) uma intensa e rica experiência interdisciplinar. Filósofos eram obrigados a estudar o pensamento social brasileiro; sociólogos, antropólogos, cientistas políticos, a ler, pelo ponto de vista lógico-filosófico, os primeiros capítulos de O Capital, com o próprio Giannotti; economistas sujeitavam-se à leitura em conjunto de Mímesis, de Auerbach, um clássico da teoria literária do século XX.

Todos se comprometiam a ler os trabalhos produzidos pelos membros do grupo, debater com eles e expor-se ao diálogo e à crítica. Pensado por Giannotti como um dispositivo para romper os limites artificiais que a institucionalidade acadêmica impunha às pesquisas individuais, o programa refletia o próprio espírito e o funcionamento do Cebrap: uma instituição que teve em sua origem intelectuais dos diversos territórios das assim denominadas “ciências humanas”, compondo uma liga de metais submetidos a alta temperatura no cadinho da ditadura militar, organizado como um centro de excelência cujo projeto era pensar e repensar a sociedade brasileira. Giannotti nos legou, como filósofo, uma vasta obra.

Nas últimas duas décadas, impôs à sua obsessão de vida, Wittgenstein, o diálogo só à primeira vista improvável com Heidegger. Gostaria, no entanto, de chamar a atenção para um livro seu, de 1983. Trata-se da coletânea de ensaios Trabalho e Reflexão: Ensaios para uma dialética da sociabilidade. Estes textos, que tematizam da teoria da história à antropologia, da psicologia behaviorista aos fundamentos da teoria econômica, e que confluem no sentido de extrair daí uma teoria da sociedade, da natureza do fenômeno social e dos fundamentos das ciências humanas, são o espelho tanto do universo interdisciplinar que ele sistematicamente adotava para si e que zelava por exigir de todos os outros.

Numa época em que o discurso não possui legitimidade se não vier acompanhado de suas credenciais de autorização, burocrático-acadêmicas, sociais, profissionais ou especialmente identitárias, o esforço de Giannotti ia na contramão dessa tendência atomizadora. Se a filosofia no Brasil é possível, eterna questão que inquieta os filósofos, uma das maneiras, talvez a mais rica, seja essa que ele manteve viva: a do filósofo que, como bom cozinheiro que era, transforma os ingredientes das diversas áreas do saber em novos pratos.

Giannotti, para mim, será para sempre aquele que estará sentado, inquieto, irrequieto, numa cadeira, da primeira fileira do auditório do Cebrap. Inquieto e irrequieto, e sem o receio de interpelar, frequentemente com uma franqueza sem tom e sem tato, tanto o jovem pesquisador que expõe seu trabalho quanto o filósofo internacional da momento que desembarcou, desavisado, crendo-se numa missão civilizatória nos trópicos. Que sua lembrança permaneça viva, mais do que nunca, naquele seu lugar, naquela primeira fileira.

Em meus campos de pesquisa até
hoje sinto a forte marca de Giannotti

Giannotti teve importância fundamental em minha formação intelectual. Fui estudar filosofia em boa medida por causa dele. Quando ainda era aluno de graduação em direito procurei-o para que me coorientasse na tese de conclusão de programa do PET-CAPES Direito. Na época o que me atraia era a análise da teoria do valor em Marx. Giannotti leu o que já tinha produzido nessa época e me instruiu a me preparar para um curso sobre o Tractatus, de Wittgenstein, que daria juntamente com o Prof. Luiz Henrique dos Santos na pós-graduação de Filosofia da USP.

Não era o Marx que buscava, mas aceitei prontamente a proposta. Li furiosa e sofridamente duas coletâneas de textos de Frege e Russell que Giannotti me recomendara. Quebrei a cara. Aos poucos fui descobrindo que para bem entendê-los deveria frequentar cursos de lógica. Foi o que fiz, acompanhando as disciplinas ministradas por Luiz Henrique Lopes dos Santos na USP.

No final do ano, já frequentando o curso de pós, Giannotti me perguntou por que não me candidatava a uma vaga na pós-graduação em filosofia. A ideia me surpreendeu, pois pensava em prestar vestibular para o curso de Filosofia. Ao saber disso, exclamou: “Que coisa idiota! Você já fez duas graduações (Direito e Ciências Sociais) e quer fazer outra??!!” No ano seguinte ingressei no mestrado em Filosofia na USP, sob a orientação de Giannotti, e passei no concurso para o Programa de formação de quadros do CEBRAP.

Já no CEBRAP os bolsistas tiveram a oportunidade de conviver com Giannotti nos seminários que ele mesmo promoveu (Kant, Wittgenstein, Habermas – Teoria da Ação Comunicativa etc.), ou organizou (Bento Prado Jr, Singer, Luiz Felipe Alencastro etc., especialmente para os bolsistas, bem como de inúmeros outros seminários “da casa” que ocorriam na instituição.

O convívio próximo com amigos de outras áreas foi marcante para todos que dele participaram. Giannotti foi o grande mentor e patrono do programa, inclusive se envolvendo no seu lado social, nos encontros regulares no restaurante Jabuti, em sua casa ou em alguma outra festividade.

Segui minha carreira acadêmica na área de Filosofia do Direito e tenho com Giannotti uma dívida impagável. Incentivou, influenciou, abriu caminhos, assuntos, métodos e abordagens. Foi um mestre do pensamento e seu papel no programa de bolsistas foi essencial. Este foi um programa decisivo para todos que dele participaram e que tinha “a cara do Giannotti” em termos de seus métodos, interdisciplinaridade, rigor e objetivos e ambição de formação intelectual.

A sua insistência incisiva sobre “a busca do conceito”, sobre o esclarecimento das questões de pesquisa e precauções contra as confusões no uso de conceitos vagos, demasiadamente abertos e também pela clara fixação da questão conceitual que cada pesquisa deveria enfrentar foram orientações marcantes para todos os bolsistas. Para quem se interessava por filosofia, tudo isso foi essencial. Foi um privilégio esta oportunidade.

Em meus campos de pesquisa até hoje sinto a forte marca de Giannotti. Seja no interesse pela filosofia analítica, em particular, Wittgenstein, seja pela tradição hermenêutica também relevante nos estudos que fiz sobre o pensamento de Carl Schmitt, sobre teoria contratual e sobre Ronald Dworkin. Percebo sua influência no modo de estudar, na exigência do rigor analítico combinada com o esforço de ir além da mera relojoaria intelectual na análise de texto, na combinação da interdisciplinaridade com a rejeição do ecletismo apressado e superficial e na irreverência diante dos modismos intelectuais.

Ronaldo Porto Macedo Junior

Professor Titular no Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito da USP e Professor de Teoria do Direito na Direito - FGV - São Paulo. Procurador de Justiça aposentado

Programa de Formação de Quadros, 1986-1988

Vinicius Berlendis de Figueiredo

Professor titular do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Paraná e bolsista CNPq

Programa de Formação de Quadros, 1988-90

Conheci Giannotti como aluno no primeiro ano de minha graduação no departamento de filosofia da USP, em 1984. No ano seguinte, ele me propôs fazer uma iniciação científica, que seguiu por dois anos. Giannotti acolheu meu projeto sobre Platão, mas logo propôs que o lêssemos por intermédio do livro de Charles Rosen, que abordava O sofista a partir de operadores wittgensteinianos. Os encontros em sua casa no Morumbi eram semanais, além dos almoços de domingo – outra atividade formativa, voltada à gastronomia, vinho e boa companhia. Além dos doces e do carinho de dona Maria.

Antes mesmo de ingressar no mestrado, em 1988, fui convidado por Giannotti a assistir aos mesões do Cebrap. Lembro como se fosse ontem da pergunta de Guillermo O’Donnel numa discussão de conjuntura: “Mas vocês não trabalham com a hipótese de que esse país pode não dar certo?!” No período em que participei do Programa de Formação de Quadros, essa hipótese não existia.

O clima geral da casa era o de pensar os desafios que a transição democrática impunha às ciências humanas, cogitar políticas públicas, refletir um pouco sobre tudo, de olho no país. As questões tinham algo de épico, as brigas teóricas eram de gente grande e o café, amistoso. O Jabuti ou a Venite eram a parada natural antes de voltar para casa. O Grupo de Formação de Quadros era indissociável disso.

No que toca à minha orientação na filosofia, a reviravolta deu-se já no primeiro ano do mestrado, O projeto inicial sobre Wittgenstein não andava, quer por minhas limitações em lógica, quer pelo fato de que Giannotti estava tomado pelas questões que descobriu no filósofo vienense, de modo que cada encontro era um recomeçar do zero. Um simples encontro de orientação tornava-se um Gedankenexperiment instigante e desorientador. Giannotti disse que eu passasse a Kant, que terminei estudando no mestrado e doutorado. Sou tomado até hoje por kantiano por culpa do Giannotti.

Após concluir o Programa de Formação de Quadros, segui no Cebrap como seu assistente de pesquisa até 1993, quando mudei para Curitiba. A mão de Giannotti foi decisiva. Sempre insistiu que iniciássemos o quanto antes a carreira docente e, como havia grande número de aposentadorias em curso, viu nisto uma janela para despachar um grupo de jovens estudantes, muitos dos quais gravitando em sua órbita, a fim de renovar o departamento da Federal do Paraná. Muitos foram, outros voltaram, eu e alguns ficamos até hoje.

Recordo-me bem do impacto devastador que lhe causou a interrupção do Programa de Formação de Quadros pela Capes. Um dos sinais de que a hipótese de O’Donnel ganhava corpo.

Durante todos esses anos, encontros e conversas nunca cessaram. Li previamente quase todos seus escritos. Ele acreditava que eu tinha estilo e podia tornar uma passagem ou outra menos complicada. A ideia era boa, mas inviável. Giannotti era detentor de um estilo irredutível, personalíssimo, ousado e generoso – no texto e fora dele. Será preciso algum tempo para que se perceba quão longe ele foi na filosofia e na vida.

Andréia Galvão

Professora livre-docente do Departamento de Ciência Política e diretora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp

Programa de Formação de Quadros, 1995-97

A passagem pelo Programa de Formação de Quadros foi uma experiência ímpar. Eu era estudante do Programa de Mestrado em Ciência Política da Unicamp, minha bolsa estava prestes a terminar, mas minha pesquisa precisava de mais tempo para ser concluída e, naquele momento, as alternativas de financiamento eram escassas. O Programa não apenas me proporcionou condições materiais de sobrevivência, como também a possibilidade de aprofundar minha formação na companhia de outros 11 estudantes, provenientes das mais diversas áreas disciplinares e instituições.

A formação se dava em diferentes âmbitos, seja nos seminários do grupo -ocasião em que exercitávamos, com autonomia, a leitura e interpretação de grandes obras das Ciências Humanas -, seja nos seminários abertos, nos quais eram discutidos temas os mais variados e se apresentavam autores consagrados, nacional e internacionalmente. Para uma estudante de mestrado, o contato próximo com esses pesquisadores constituía uma oportunidade única de interlocução e debate. Giannotti sempre foi muito presente e acolhedor, verdadeiramente interessado em ouvir o que nós, estudantes, tínhamos a dizer. Minha pesquisa de mestrado se desenvolveu ao longo desse processo, com a leitura atenta e rigorosa de Giannotti, bem como dos pesquisadores do Cebrap que, pouco tempo antes, haviam publicado um estudo sobre meu objeto de pesquisa: as câmaras setoriais.

A convivência com Alvaro Comin, meu então tutor, Adalberto Cardoso, hoje meu colega na coordenação da Rede de Estudos e Monitoramento Interdisciplinar da Reforma Trabalhista (Remir-Trabalho) e a participação especial de Francisco de Oliveira na defesa do meu paper foram marcos significativos em minha trajetória acadêmica, especialmente porque trabalhávamos com perspectivas bastante diferentes: eu discordava da análise que eles faziam e vice-versa. Como Giannotti gostava de dizer, a defesa do paper era mais que um “rito de passagem”, era um “batismo de sangue”. No meu caso, foi um “batismo” e tanto, já que fui duramente criticada pela banca. Depois dela, tive a certeza de que poderia encarar as mais adversas audiências, o que foi fundamental para participar de congressos e bancas posteriores!