As cidades brasileiras perderam Lúcio Kowarick, um dos mais argutos pioneiros da sociologia urbana brasileira. Eu, Eduardo, guardo ainda comigo o exemplar, surrado e colado, de “A Espoliação Urbana” comprado em sebo na Rua da Carioca no Rio de Janeiro em 1989. Assim como eu, muitos pesquisadores e ativistas do urbano fomos profundamente impactados por ele.
Seu olhar sobre a cidade foi informado por uma compreensão ampla dos processos sociais de produção das desigualdades e da posição dos grupos subalternos nessa produção, como mostrado no clássico da sociologia, “Trabalho e Vadiagem”, publicado em 1987. Para aqueles que, como eu, Adrian, tiveram a fortuna de ser seus alunos e/ou orientandos, esse olhar cuidadoso para os processos lidos à busca das chaves explicativas da desigualdade foi profundamente formativo.
Lúcio entrou na Universidade de São Paulo em 1970 e se aposentou no Departamento de Ciência Política da USP em 2008, que por duas vezes chefiou. Doutorou-se em 1973 com trabalho marcado por destacado rigor conceitual pelos cânones da época, publicado posteriormente como o livro “Capitalismo e Marginalidade na América Latina”, em 1975.
Essas primeiras explorações sobre o caráter periférico de nosso capitalismo desdobraram-se em uma mirada arguta sobre a nossa formação social e nossos padrões de urbanização. Essa contribuição já estava muito presente no histórico “São Paulo 1975: Crescimento e Pobreza”, produzido coletivamente no Cebrap. O livro contou com financiamento da Arquidiocese Metropolitana de São Paulo e teve desdobramentos não apenas intelectuais como políticos, gerando inclusive um atentado à bomba na sede do Centro.
A contribuição autoral de Lúcio sobre o urbano, entretanto, se evidenciou de modo mais pleno em “A Espoliação Urbana” de 1979. Em nossa opinião, é individualmente o mais importante livro do início de nossos estudos urbanos, conectando com sutil elegância explicativa formas de produção do espaço periférico a padrões de acumulação, sobre o onipresente pano de fundo do regime militar. Ao longo das décadas que se seguiram, o campo do urbano foi fortemente influenciado por suas contribuições sobre pobreza, precariedade habitacional, movimentos socias urbanos, periferias, e as vulneráveis vidas de seus moradores, elaboradas tanto no DCP da USP quanto no Cedec.
De “Conflitos Sociais e a Cidade” a “Viver em Risco”, passando por “Escritos Urbanos”, sua obra se disseminou pela América Latina e influenciou gerações de analistas e ativistas das cidades. Seu olhar foi sempre permeado por delicada sensibilidade sociológica associada a profundas e sinceras preocupações com as (duráveis) desigualdades que marcam nossa sociedade e nossos espaços, como mostrado mais uma vez pelo seu interesse no estudo da sub-cidadania nos últimos anos de sua carreira como pesquisador. Pensamento essencial nos dias que correm, e que fica conosco através de seus muitos escritos urbanos.
Uma homenagem de Eduardo Marques e Adrian Gurza Lavalle