Centro que reuniu intelectuais no auge da ditadura fez concessões para existir; já a geração atual é mais acadêmica.
Para se constituir justamente no período mais duro da ditadura militar brasileira, imediatamente após a entrada em vigor do Ato Institucional nº 5, que limitou direitos civis e políticos no país, o Cebrap, que agora completa 40 anos, teve que se valer de uma série de negociações -algumas tácitas, outras mais explícitas. O próprio nome da instituição, diz o filósofo José Arthur Giannotti, foi escolhido propositalmente para ser o mais neutro possível. “Centro Brasileiro de Análise e Planejamento não quer dizer nada.” Além disso, também era importante o fato de o centro não se propor a realizar aulas para estudantes de graduação. “Percebemos que não havia problema em se fazer pesquisa, desde que não doutrinássemos alunos”, comentou Giannotti em sua palestra há uma semana. Outra estratégia foi a de, desde o início, tornar públicas todas as pesquisas ali realizadas. O sociólogo Francisco de Oliveira, que entrou para a casa em 1970, diz que foi “uma ousadia, uma jogada de inteligência fazer publicar as coisas”. “Isso servia para não deixar parecer que ali se fizesse qualquer coisa que fosse secreta”, afirma.
“Não volto pro exílio” Quanto às negociações explícitas, segundo a demógrafa Elza Berquó e Giannotti, elas couberam quase que exclusivamente a Fernando Henrique Cardoso. O filósofo relatou uma conversa que teve com FHC logo depois de terem sido cassados da universidade. “O Fernando disse: “Não volto para o exílio. E dá, com os contatos internacionais que tenho, para fundar um instituto”.” O ex-presidente, em entrevista à Folha, disse ter tido contato com instituições internacionais de financiamento à pesquisa em sua passagem pelo Chile, logo depois do golpe no Brasil, quando trabalhou em um instituto ligado à Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe). Foi ele então quem conseguiu negociar, com a Fundação Ford, o investimento e as bolsas de pesquisa iniciais necessárias para a existência do Cebrap. Mais tarde, a cada ameaça de ação da linha dura do regime militar contra os intelectuais do instituto, o sociólogo intervinha, disse Berquó na sua palestra comemorativa. “O Fernando Henrique, pela sua familiaridade, pelo fato de ter tido pai militar, avô militar, dialogou sempre com muita leveza e com muito trânsito. Com o Golbery [do Couto e Silva, principal assessor do presidente Ernesto Geisel, 1974-1979], por exemplo, ele conversava toda vez que havia alguma coisa mais forte contra o Cebrap”, disse Berquó. FHC afirma nunca ter falado com o general Golbery por causa do Cebrap. Segundo ele, na mesma época a que Berquó se refere, meados dos anos 70, ele procurou um assistente do militar, que havia sido ajudante de ordens de seu avô, para reclamar contra a censura à revista “Argumento”, em que trabalhava ao lado, entre outros, de Antonio Candido e Paulo Emilio Salles Gomes. Ele concorda com seus colegas que, no início da existência do Cebrap, “era preciso ter um certo cuidado” e que o centro “foi uma boia de salvação” para muitos pesquisadores naquele momento.
Gerações O professor de filosofia Marcos Nobre, pesquisador do Cebrap, elogia a geração anterior por sua “decisão corajosa”, baseada “numa avaliação política muito precisa”. “E muito diferente daquelas feitas por outros grupos políticos, que respondiam à radicalização do regime com igual radicalização.” Nobre afirma que o tipo de negociação levado à frente pelos intelectuais que fundaram o instituto era possível também por seu pertencimento à elite do país. As relações pessoais, ele diz, serviram de forma geral para processos de negociação ao longo da ditadura. “Isso reproduz algo que foi muito importante para o processo de abertura também. As pessoas que morriam, que eram torturadas, sempre tinham um tio, um parente com alguma relação com os militares”, diz Nobre. E o processo de abertura, por sua vez, terminou por transformar o Cebrap. Nos anos 80, muitos dos que participaram da fundação do instituto passaram a se engajar diretamente com governos recém-eleitos. FHC entrou por inteiro na carreira política, mas membros de primeira hora, como o economista Paul Singer, também passaram a auxiliar mandatos legislativos e executivos. A atual geração, diz Marcos Nobre, “é a mais acadêmica, no sentido estrito”. Alguns dos principais cientistas políticos, sociólogos e antropólogos do país estão lá, fazendo pesquisas, requisitadas muitas vezes por ministérios ou governos locais. “É essa geração”, de pesquisadores competentes, “que aqueles caras do grupo fundador queriam criar”.