Em São Paulo, teatro lotado de intelectuais assiste à estreia do ‘filme de FHC’

Não vai chegar às grandes salas de cinema. Não vai provocar lágrimas generalizadas nas plateias. Não tem uma personagem forte como dona Lindu. Mas, pelo menos, lotou um teatro de 600 lugares em São Paulo em sua estreia.

Não vai chegar às grandes salas de cinema. Não vai provocar lágrimas generalizadas nas plateias. Não tem uma personagem forte como dona Lindu. Mas, pelo menos, lotou um teatro de 600 lugares em São Paulo em sua estreia.

Nesta terça-feira à noite, no Sesc Vila Mariana, uma plateia repleta de intelectuais assistiu à exibição do DVD “Retrato de Grupo”, dirigido por Henri Arraes Gervaiseau, sobre a geração de intelectuais que pôs de pé o Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).

Na plateia O governador de São Paulo, José Serra, e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso assistiram à exibição do DVD “Retrato de Grupo”, dirigido por Henri Arraes Gervaiseau, sobre a geração de intelectuais que criou o Cebrap Leia outras matérias do UOL Notícias

O filme foi, obviamente, realizado muito antes da provocação do presidente do PT, Ricardo Berzoini, que sugeriu à oposição que fizesse um filme sobre a vida de Fernando Henrique Cardoso quando questionado sobre o possível uso eleitoral e político de “Lula, o Filho do Brasil”, de Fábio Barreto.

Idealizado para marcar os 40 anos da instituição que congregou os intelectuais paulistanos e circulando encartado no livro também chamado “Retrato de Grupo”, a obra é uma espécie de “filme sobre Fernando Henrique Cardoso”, mas não apenas.

Não é uma superprodução e nem está centrado apenas na figura do ex-presidente da República, mas o DVD não deixa de ser o registro de um momento fundamental e talvez dos mais “emotivos”, como afirmou o próprio FHC, da sua trajetória e de outros intelectuais de peso (mediados pela atual presidente da instituição, a antropóloga Paula Montero, FHC e o sociólogo Francisco de Oliveira falaram, após a exibição do filme, sobre a experiência do Cebrap, pouco depois de um depoimento do governador José Serra, que integrou a instituição por cinco anos, a partir de 1978).

Com o risco da má comparação e, portanto, da má compreensão, é possível dizer que a criação do Cebrap em 1969 tem para FHC o mesmo significado que a entrada na direção dos sindicatos dos metalúrgicos de São Bernardo poucos anos depois para Lula: abriu-lhe as portas de um caminho político que não se podia prever os levaria à Presidência da República décadas à frente.

Claro que há exagero em dizer que o filme é “sobre FHC”. Mais preciso seria dizer, portanto, que é um filme sobre o grupo do qual FHC tornou-se expoente. Tanto assim que a obra se inicia e termina com depoimentos de Chico de Oliveira, hoje no PSOL e duro crítico dos anos FHC e Lula. E conta com depoimentos de vários outros integrantes do Cebrap que marcaram a vida intelectual do país nas últimas décadas.

Ao contrário do que boa parte do auditório esperava, no entanto, houve pouca provocação entre Chico e FHC durante o debate após a exibição. O filme foi, nesse sentido, mais “quente”, com Chico pedindo explicitamente aos entrevistadores que, ao editarem o depoimento, não amenizassem suas posições.

Discussão morna Ao contrário do que boa parte do auditório esperava, houve pouca provocação entre Francisco de Oliveira e FHC durante o debate Leia outras matérias do UOL Notícias

Para ele, FHC na Presidência representou uma “virada à direita” na política brasileira, e Lula, uma “regressão”. FHC é responsável, afirma, pela implementação do programa neoliberal e privatista, e Lula “bloqueou a contestação”, fazendo dos trabalhadores “sócios do êxito desse capitalismo”. Lula, diz Chico, permitiu a liderança moral dos trabalhadores no processo político, mas retirou o conflito necessário à mudança.

Além das críticas diretas de Chico a FHC, havia o fato recente de o tucano ter usado algumas elaborações de Chico para descrever o governo Lula – o papel crescente dos sindicalistas, como uma espécie de nova classe social no poder – para criticar o petista. FHC, em texto publicado no jornal “O Estado de S.Paulo”, em que fala em “autoritarismo popular” e faz associações com o peronismo argentino.

Prevaleceu no palco do auditório, no entanto, a memória dos tempos mais difíceis do Cebrap, sob o regime militar – ou seja, a experiência que unifica intelectuais hoje tucanos, petistas ou mais radicais que ainda se abrigam, apesar das divergências políticas, na instituição.

História FHC foi, do ponto de vista prático e de organização, a principal figura a pôr de pé o centro em 1969, depois que vários professores da Universidade de São Paulo foram cassados pela ditadura militar.

O grupo, que inclui o filósofo José Arthur Giannotti, a demógrafa e estatística Elza Berquó e o economista Paul Singer, entre tantos outros, imaginou um centro de estudos em que pudessem atuar de forma independente da universidade. O nome, Cebrap, foi escolhido cuidadosamente após muita discussão (esse pessoal, sim, gostava de discutir): era preciso encontrar algo “que não quisesse dizer grande coisa”, como lembra em seu depoimento Berquó.

E porque ela havia sido cassada? Berquó dava aulas na Faculdade de Saúde Pública. “Gravavam minhas aulas”, lembra ela. Aulas que não poupavam a falta de ação das autoridades do regime diante dos altos índices de mortalidade infantil.

Imagem de arquivo mostra uma reunião do Cebrap em 1989. Na foto, em sentido horário, José Arthur Giannotti, Elza Berquó, Teresa Caldeira, Francisco de Oliveira, Castro Santos e Ruth Cardoso Leia outras matérias do UOL Notícias

O Cebrap, com seus seminários e pesquisas empíricas, encomendadas por governos e instituições internacionais, permitiu que esse grupo afastado da universidade se mantivesse na ativa e fosse, na prática, “forçado” a realizar uma experiência de elaborar usando os conhecimentos das diversas áreas em que eram especialistas. Foi na prática um centro de resistência intelectual ao regime autoritário, quase um “convento”, nas palavras de Chico, onde se tinha a ilusão de que se era livre.

A ditadura suspeitava do Cebrap, o imaginava como um “biombo” de alguma organização política. Para FHC, o próprio MDB, partido de oposição consentida que daria mais à frente no PMDB, achava isso, e foi procurar o grupo em 1974 – nos anos de 1974 e 1975, vários membros do Cebrap seriam presos, e, nos casos de Chico de Oliveira e de Vinícius Caldeira Brant, submetidos à tortura.

FHC, num momento de maior empolgação após a exibição do filme, citando encontro lembrado por Chico de Oliveira dos intelectuais do Cebrap com líderes do conservador MDB (“aprendemos ali que nem sempre ser conservador é ser reacionário”, diz, e compara: “Mais conservador que Tancredo Neves, nem Nossa Senhora de Guadalupe”), chega a dizer que o Cebrap, ao municiar a oposição com as ideias e as pesquisas que fazia, elaborou a “matriz de todos os partidos brasileiros” ao incluir na agenda política temas da social-democracia.

Com piadas menos preparadas e menos inspirada que as de Chico, FHC arrancou risos não planejados ao dizer que sempre foi muito ligado “à coisa brasileira, por incrível que pareça” ao explicar porque, em 1969, o Cebrap surgiu. Depois, corrige: quis dizer que sempre deu mais aula fora do Brasil do que aqui por conta das circunstâncias adversas.

Uma espécie de sentimento de grupo, em boa parte do auditório, é evidente. Mas, se as tensões políticas não se expressam claramente, elas permanecem. E podem ser resumidas numa fala do crítico literário Roberto Schwarz, que, no filme, explica o que acha dos governos FHC e Lula – cada um a sua maneira, ligado mais ou menos intensamente, dependente do ponto de vista e da análise, à história do Cebrap. Sua posição é a seguinte: são governos de atualização capitalista bons, que não contam com seu apoio. Para ele, o intelectual deve ser “crítico e negativo de maneira mais profunda”.

No livro, a edição de sua entrevista é ainda mais contundente: “Não avalio mal o governo Lula, assim como não avalio mal o governo Fernando Henrique. Acho que são governos que têm pé e cabeça, ao contrário dos anteriores, que não tinham direção. São bons governos de atualização capitalista, com iniciativas importantes, que fazem mais ou menos o que está na ordem do dia (…). O que me parece errado é adotar uma visão rósea do curso geral do capitalismo porque o Brasil está com vento a favor ou porque temos amigos no governo. A irracionalidade e a destrutividade do capitalismo estão aí.”

FONTE UOL Notícias

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