José Arthur Giannotti: Cebrap perde um de seus fundadores

Aos 91 anos de idade, José Arthur Giannotti faleceu no dia 27 de julho de 2021, em São Paulo. Giannotti nasceu em São Carlos (SP) em 25 de fevereiro de 1930. Ingressou no curso de filosofia da USP em 1950, universidade pela qual obteve seu doutoramento em filosofia, em 1960. Tornou-se professor do Departamento de Filosofia da USP em 1958, e, em 1965, livre-docente pela mesma instituição. Em 1969, foi aposentado compulsoriamente pela ditadura militar. Fez parte do grupo que, em resposta à perseguição ditatorial, fundou o Cebrap, instituição da qual foi presidente em duas oportunidades (1984-1990 e 1995-2001). Em 1983, com o fim da ditadura militar à vista, foi um dos fundadores da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (ANPOF) e foi o seu primeiro presidente (1983-1984). Durante o governo de Fernando Henrique Cardoso foi membro do Conselho Nacional de Educação. Um órgão de Estado e não de governo, como sempre fez questão de enfatizar.

 

Giannotti foi um dos mais destacados representantes de uma geração que fez pesquisa no mais alto nível. Em sua atuação, Giannotti bateu-se pela profissionalização do trabalho filosófico sob a forma da implantação do rigor científico mais avançado, combatendo arcaísmos de diversos matizes. Esses combates se confundem com sua figura polêmica e produtora de polêmicas.

 

Produziu uma interpretação da obra de Marx que não se encaixava nem nas lógicas partidárias nem nas versões consagradas da esquerda. Seja em Origens da dialética do trabalho, de 1966, ou em Certa herança marxista, de 2000, trata-se de uma interpretação que falava de igual para igual com as interpretações dominantes mais avançadas de cada momento. O mesmo se pode dizer da ampla e original teoria da sociabilidade que apresentou em Trabalho e reflexão: ensaios para uma dialética da sociabilidade, de 1984, em que mobilizou o pensamento de Marx em conjunção com resultados de diversas disciplinas das ciências humanas e da filosofia. A mesma originalidade e o mesmo interesse podem ser encontrados em suas interpretações de dois pensadores de referência da filosofia contemporânea em torno dos quais organizou e reformulou seus achados de momentos anteriores de sua obra: Wittgenstein e Heidegger, examinados em livros como Apresentação do mundo: considerações sobre o pensamento de Ludwig Wittgenstein (1995) ou Heidegger/Wittgenstein: confrontos (2020). Também Wittgenstein foi o parceiro intelectual principal mobilizado por ele em seu exame da arte no livro O jogo do belo e do feio, de 2007.

 

Exatamente porque polêmico e questionador de consensos estabelecidos, Giannoti foi um construtor de instituições. Acreditava que somente a institucionalização da liberdade poderia permitir que as instituições que ajudou a criar e a defender pudessem ser, ao mesmo tempo, questionadas em suas bases. Foi assim que desenvolveu sua intensa atividade como intelectual público, registrada, por exemplo, em livros como Universidade em ritmo de barbárie, de 1986, ou Notícias no espelho, de 2011.

 

Mas não se deve aqui entender “instituição” apenas no sentido de instituições formais. Giannotti valorizava como poucos as amizades em suas diferentes dimensões. Não por acaso insistia tanto em que o conhecido “Seminário Marx” era antes de tudo um grupo de amigos. Não por acaso, igualmente, esse grupo de amigos foi um dos germes que permitiu e que levou à fundação do próprio Cebrap, cinco anos depois que essas reuniões para discutir textos clássicos como O Capital foram interrompidas por ocasião do golpe de 1964 e do exílio de algumas pessoas desse círculo, Fernando Henrique Cardoso, notadamente.

 

Mesmo a ruptura histórica e de vida representada pela ditadura militar não conseguiu impedir Giannotti de continuar construindo instituições. Afastado violentamente da docência universitária – atividade que prezava no mais alto grau –, reuniu alguns dos alunos ingressantes do curso de filosofia em um seminário informal a partir de 1970, germe do que viria a ser a área de filosofia do Cebrap. Na década de 1980, com o declínio da ditadura, retornou à USP para dar aulas, atividade que manteve de maneira intermitente até os anos 2000. Ao longo de toda a década de 1990, manteve o seminário Lógica e Ontologia no Cebrap, pelo qual passaram incontáveis estudantes.

 

Se a ditadura militar representou o desmantelamento do projeto de modernização democrática e de combate às desigualdades por que lutou, a criação do Cebrap permitiu que Giannotti realizasse de maneira brilhante o conselho que recebeu de seu professor de graduação e amigo, Gilles-Gaston Granger. Como afirmou certa vez Giannotti, “para mim, ler Marx e ao mesmo tempo aprofundar minha familiaridade como as ciências sociais equivalia a obedecer ao conselho que G. Bachelard tinha dado a G.-G. Granger e este a mim: se pretende estudar epistemologia, case-se com uma ciência. Mas desde logo manifestei minhas tendências polígamas, pois eram todas as ciências sociais que pretendia abranger”.

 

Com o fim da ditadura, colocou-se a questão de saber que rumos poderia tomar o Cebrap, que perfil seria adequado a uma instituição criada inicialmente para resistir ao regime ditatorial. Juntamente com Elza Berquó, Giannotti foi decisivo no estabelecimento das novas diretrizes da instituição. Passou a se dedicar ao duplo projeto de pensar novos horizontes para o país por meio da renovação da pesquisa em ciências humanas e de formar novas gerações empenhadas como a dele – mas em contexto certamente muito diverso – com o projeto de construção de um país democrático que coloque como prioridade absoluta o combate a todas as formas de desigualdade. Foi assim que Giannotti criou e dirigiu o “Programa de Formação de Quadros Profissionais”, programa interdisciplinar na área de humanidades que reuniu estudantes de todo o país e ajudou a formar uma grande geração de intelectuais no Brasil.

 

É muito raro que coincidam em uma mesma pessoa um filósofo brilhante, um construtor ímpar de instituições, um professor dedicado e um intelectual público de rara sagacidade. É o que faz de uma pessoa um emblema. É o que dá a dimensão da perda emblemática que representa o desaparecimento de Giannotti.

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