Sobre o lançamento do núcleo de pesquisa AFRO do Cebrap

4 de novembro de 2019, uma segunda-feira quente, foi o dia do lançamento do décimo quinto núcleo de pesquisa do Cebrap. Coordenado por Márcia Lima, o AFRO – Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial nasce com objetivos ousados e urgentes. “O Afro é um núcleo de pesquisa, formação e difusão sobre a temática racial. Temos como prioridade a produção de pesquisa em diálogo com a sociedade civil, formadores de opinião e público interessado no debate sobre o tema e seus desdobramentos. (…) Visamos dessa forma contribuir para o enfrentamento do racismo, a promoção dos direitos humanos e o fortalecimento da democracia”, afirmou a coordenadora do núcleo.

Para tal empreitada, a socióloga e professora da USP explicou que o AFRO trabalhará em três eixos:

  • Cultura e identidades – Memória da mobilização negra (sistematização de acervos do movimento negro), promovendo a preservação da memória, a disseminação da história e o diálogo intergeracional, e trajetórias de intelectuais e do pensamento negro brasileiro.
  • Descriminação e desigualdades – Produção e análise de dados sobre a produção e reprodução das desigualdades raciais e das situações de discriminação em diferentes esferas: no mercado de trabalho, no território, na educação e no acesso ao ensino superior, na violência e na política.
  • Políticas e direitos – Pesquisas sobre direito e o antirracismo: a aplicação da lei antirracista, bem como as legislações vigentes e propostas. Em relação às políticas públicas, visamos acompanhar as políticas de igualdade racial, sua construção, efeitos e mudanças assim como seu desmonte.

Após a apresentação do núcleo, Márcia Lima passou a palavra para os dois primeiros apoiadores do AFRO. Representando a Fundação Tide Setúbal, uma emocionada Maria Alice Setúbal disse que “estou aqui hoje super feliz, afinal a Fundação Tide Setúbal tem essa mensagem do diálogo, de construir pontes, porque nossa missão é fomentar iniciativas baseadas em justiça social e no desenvolvimento das periferias humanas enfrentando as desigualdades sócio-raciais. E a questão racial é central nisso tudo”.

Já André Degenszajn, do Instituto Ibirapitanga, frisou que “esse campo de pesquisa se constitui como um interesse muito forte do Ibirapitanga porque somos uma organização extremamente interessada em fortalecer o debate público sobre racismo, de fortalecer movimentos anti-racistas”.

Então, para encerrar o evento, foi a vez de chamar a madrinha do AFRO, a filósofa, escritora e ativista Sueli Carneiro: “Um registro importante é o AFRO nascer sob o abrigo dessa importante instituição que é o Cebrap, de tantas contribuições para defesa e consolidação da democracia no Brasil e para as questões de gênero e raça, sobretudo as pesquisas sob liderança de Elza Berquó. (…) Nesse atual cenário de retrocesso, em atual para os temas de gênero e raça, é extremamente emblemático que o AFRO nasça abrigado nessa instituição que foi, em outros tempos também cinzentos, refúgio inestimável para a resistência contra o autoritarismo, ao arbítrio e ao obscurantismo. A agenda de estudos do AFRO, dedicada a raça, gênero e justiça racial, responde com coragem e competência aos ataques ao pensamento crítico que se evidenciam na perseguição a universidades e escolas, no esvaziamento das políticas públicas de promoção de igualdade e equidade de gênero e raça. E essa resposta se assenta no compromisso de contribuir para o enfrentamento do racismo, à promoção dos direitos humanos e ao fortalecimento da democracia”, disse, sob aplausos, a fundadora do Geledés – Instituto da Mulher Negra.

André Degenszajn, Sueli Carneiro, Maria Alice Setúbal, Raphael Neves e Márcia Lima

Confira abaixo a íntegra da mensagem de Marcos Nobre, presidente do Cebrap, lida por Raphael Neves, diretor científico da instituição, na ocasião do lançamento do AFRO:

Celebramos hoje uma nova etapa na vida do Cebrap. Não há nenhum exagero em dizer que o lançamento do AFRO representa um amadurecimento institucional e científico que o Cebrap vem buscando há muito tempo. Porque, se demorou 50 anos para podermos nos lançar nesse novo começo, isso não significa que tudo tenha começado agora. Não só porque Márcia já pertence ao Cebrap (e o Cebrap pertence a ela) há muito tempo – 16 anos, se não errei nas contas. Gostaria rapidamente de relembrar que raça, racismo e justiça racial são temas cebrapianos há pelo menos quatro décadas. E que é esse acúmulo que agora mudará de patamar com o AFRO. 

Citando trechos de uma entrevista de Elza Berquó para a Revista Fapesp: 

“O item raça/cor estava no Censo de 1940, de 1950; o de 1960 não saía publicado; e no de 1970 o regime militar tirou essa informação. Ficamos um tempo grande sem informação sobre cor. Não sabíamos como estava a população negra no Brasil. Sentíamos falta daquilo. Quando saiu o Censo de 1980, a população negra aparecia lá embaixo, em todos os indicadores. Pensei que precisaríamos fazer alguma coisa. Comecei a estudar a demografia do negro, fiz um projeto sobre a saúde reprodutiva da mulher negra, entre 1991 e 1993, publiquei trabalhos e realizamos vários seminários no Cebrap a esse respeito”. 

Resultados de grande relevância foram publicados por Elza Berquó no artigo seminal de 1988, “Demografia da desigualdade. Algumas considerações sobre os negros no Brasil”, bem como no artigo de 1992, escrito em parceria com Luiz Felipe Alencastro, “A emergência do voto negro”. Ambos os textos foram publicados na revista do Cebrap, a Novos Estudos. 

Mais uma citação da entrevista com Elza Berquó. “Eu queria saber também sobre pesquisadoras negras. O problema era que, quando abríamos editais para bolsa de pesquisa, os negros nunca passavam – quem passava eram os brancos. Resolvi abrir um concurso específico com bolsas para pesquisadoras negras. Na primeira edição desse programa, preparei quatro delas, todas graduadas em ciências sociais. Por dois anos foram treinadas para fazer pesquisa de campo e estudaram estatística e demografia. Em seguida fizeram seus doutorados. Elas também pesquisaram a saúde da mulher negra. Foram a campo, preencheram questionários e depois fizemos uma análise. Publicamos esse trabalho. Há um vídeo que se chama Eu, mulher negra, com algumas conclusões da pesquisa. Fiz a segunda edição do programa porque a Fundação MacArthur achou aquilo incrível. Hoje essas pesquisadoras estão em universidades pelo Brasil ou em instituições internacionais. Foi o ‘Programa para formação de pesquisadoras negras’, realizado entre 1994 e 1996, que a Fundação MacArthur financiou com doação de US$ 2,3 milhões”. 

Reunida em torno de Nadya Guimarães, uma grande equipe de pesquisa se dedicou desde 1998 a examinar as desigualdades raciais no trabalho. E isso em dupla direção. Em primeiro lugar, o pressuposto desses estudos é o de que a dimensão racial tem papel estruturante para o entendimento das desigualdades sociais no Brasil. Assim, nossas análises sobre as trajetórias e representações dos trabalhadores desempregados, sobre a procura de trabalho, sobre os intermediadores privados de postos de trabalho e o papel do sistema público de emprego, sobre as trajetórias e transições de jovens no mercado brasileiro, bem como nossos recentes estudos sobre o trabalho de cuidado, em todas essas pesquisas temos procurado contemplar a dimensão racial como um dos estruturantes do nosso padrão de desigualdade. 

Em segundo lugar, ao longo desses 20 anos, pusemos o foco em temas centrais à agenda dos estudos sobre desigualdades raciais no Brasil, tais como: 

  1. acesso ao emprego e os padrões de remuneração dos ocupados,
  2. o impacto da reestruturação das firmas sobre a inclusão de negros e negras,
  3. os efeitos das políticas afirmativas sobre as chances futuras no mercado de trabalho no que concerne aos egressos, negros e negras, de instituições publicas do ensino superior que adotaram iniciativas para sua inclusão.

Foram pesquisas conduzidas com financiamento e apoio de diversas fundações e agências, como a Finep, a Fundação Hewlett, o Departamento de Estudos Econômicos e Políticos (DESEP/CUT), Assessoria dos Direitos da Mulher da Prefeitura Municipal de Santo André, Elizabeth Lobo Assessoria em Trabalho e Políticas Publicas (ELAS), Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), CEPAL, Fapesp, CNPq.

Resultados que impactaram o debate público sobre o tema estão registrados em textos como o artigo que Nadya escreveu juntamente com Ciro Biderman, “Na Ante-sala da Discriminação:  O Preço dos Atributos de Sexo e Cor no Brasil (1989-1999)”, publicado na Revista de Estudos Feministas em 2002, ou em extenso relatório final com 23 capítulos, 730 pp., organizado por Guimarães, Nadya Araujo; Leite, Márcia de Paula e com a participação de Bento, Maria Aparecida; Soares, Vera. Gestão Local, Empregabilidade e Eqüidade de Gênero e Raça: Um Experimento de Política Pública na Região do ABC Paulista. Relatório Final, São Paulo, FAPESP/CEBRAP/Prefeitura Municipal de Santo André/CEERT/ELAS, maio de 2003). 

A partir de meados da década de 2000, o Núcleo Direito e Democracia, fundado em 1999, concentrou esforços em examinar a aplicação da legislação antirracista no Brasil. Para isso, tiveram de ser criados instrumentos metodológicos inteiramente novos à época, já que a pesquisa jurisprudencial estava ainda dando seus primeiros passos naquele momento. Com apoio da Fapesp, o NDD realizou extensa pesquisa, ao longo de quase dez anos, sobre a produção legislativa e sobre a interpretação que deram os tribunais dessa legislação. Com isso, conseguiu-se pela primeira vez uma imagem de conjunto (mesmo que restrita a processos em segunda instância) dos enormes obstáculos à implementação e institucionalização de uma verdadeira agenda antirracista no Brasil. O que mostrou uma vez mais que também as cortes são espaços de disputa político-institucional decisivos e que precisam ser devidamente pesquisados para que se possa vislumbrar meios de intervenção prática que possam fazer avançar a agenda antirracista. Foram muitos os resultados dessas sucessivas pesquisas. Gostaria apenas de destacar neste contexto um artigo do ano de 2016, “Racismo e insulto racial na sociedade brasileira. Dinâmicas de reconhecimento e invisibilização a partir do direito”. As autoras? Marta Rodriguez de Assis Machado, Natália Néris e… Márcia Lima.

É uma alegria enorme este momento, Márcia. Muito obrigado.

Abaixo, a íntegra do evento de lançamento do AFRO.

Confira a equipe completa do AFRO:

Coordenadora – Márcia Lima

Pesquisadores – Danilo França (Unicamp), Flavia Mateus Rios (UFF), José Mauricio Arruti (Unicamp), Marta Machado (FGV), Matheus Gato de Jesus (Unicamp), Natália Neris (InternetLab), Paulo Ramos (USP), Renata Braga (UFABC), Silvia Aguião (IMS-UERJ) e Uvanderson Vitor da Silva (Fundo Brasil de Direitos Humanos)

Pós-doutorandas – Anna Venturini e Jaciane Milanezi

Assistentes de pesquisa – Maria Julia Ananias e Caio Sousa

Secretária Executiva – Maíra Rocha

Gerente de projetos – Renata Braga

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